10 Maio | QUINTA | 21h30
Local: Teatro da Politécnica
Na túa cara in yer face

Processo Criativo

Entrevista a Paloma Lugilde

Como é que Sarah Kane entrou na Aula de Teatro da USC?
Foi um algo que se fez aos poucos. Na verdade, tentamos estruturar o processo no sentido de trabalhar a figura de Sarah Kane, mas no início não sabíamos que nos íamos “apaixonar” (esta é a palavra que podemos usar) por ela. Foi através de performances e do trabalho sobre a sua vida que, de repente, e como numa espécie de furacão, nos sentimos atraídos e soubemos que era sobre ela que queríamos trabalhar. De facto, ela “meteu-se” na nossa maneira de trabalhar.

Misturou o mundo de Sarah Kane com o mundo de Alice no País das Maravilhas. Como organizou estes dois universos, com princípios tão diferentes?
Pois, a verdade é que foi difícil, no início, porque Sarah Kane evoca-nos bastante violência. Foi um desafio. Como criar essa dramaturgia? Por um lado, basear-nos na vida de Sarah Kane parecia difícil. Embora tenhamos muitas pistas na Internet, não temos muita documentação sobre a vida dela. Por outro lado, também não queríamos que a obra fosse só biografia, deixar ali só a Sarah Kane. Queríamos procurar um ponto de encontro com algo mais leve. Mas quando começámos a trabalhar a Alice no País das Maravilhas, demo-nos conta de que dizia o mesmo que Sarah Kane: parecia que os dois mundos se encaixavam. A “queda livre”, a qual acho que Sarah poderia sofrer no mundo que a rodeava, é a mesma “queda livre” que podia fazer Alice, através do buraco do Coelho. Então, nesse momento, começámos a ver os pontos de conexão.

No início da montagem do espectáculo, comentou que o cérebro humano é muito importante na obra. Porquê?
São vários os mundos que estão presentes, mas sem o cérebro, pois acho que todos nós estamos acomodados a diferentes personalidades e todos podemos cair. Esta violência está em nós próprios. Por isso, o cérebro foi algo que sempre me chamou muito à atenção. Interessa-me entender como funcionamos, enquanto seres humanos pessoas, saber o que há, no nosso cérebro, algo que nos faz fazer esse “clique” e mudar e, saber se somos todos, como dizia Sarah Kane, capazes dessa violência. Parece-nos muito longe de nós mas, realmente, esse “embrião” está nas nossas vidas, em muitíssimas coisas ao longo do dia e, uma acção mínima pode tornar-se numa acção violenta, dependendo das circunstâncias. É uma coisa que sempre me deu muito medo. E partindo, também, de Lorca – porque estamos sempre muito próximos do mundo “lorquiano”, de O Público, dos factos que compõem a nossa existência - entendemos, então, que todos as personagens que estão na obra são fruto da própria Sarah, estão no cérebro dela. E toda a violência que há no mundo. E tudo isso leva-a a tomar uma decisão para a sua vida, no final.

O espectáculo é formado por diferentes partes da obra de Kane, sem esquecer as mais brutais. Que dificuldades antecipa, ao levar essa violência ao palco?
A verdade é que tudo foi um desafio. É um desafio. Ainda estamos nisso e às vezes custa. Não se sabe como atacar essas cenas. De facto, quando começámos a dramaturgia, tínhamos de escolher essas cenas e parecia que íamos excluir algumas. Mas parecia-me uma cobardia, da nossa parte, pois tinha que se fazer frente a essas cenas de medo e colocá-las, ali, para ver o que acontecia. E, curiosamente, não é que seja fácil, porque não o é, penso que o mesmo se passava com Sarah Kane: a violência está, infelizmente, mais em nós do que pensamos. As próprias palavras de Sarah, para que seja possível construí-las, conduzem-nos às acções físicas.

O próprio título do espectáculo, Na tua cara, remete para uma relação violenta também com o público. Como pensas que este vai receber essa violência?
Eu não gosto da violência gratuita. Realmente, depois de trabalhar com Sarah, e depois de tudo o que ela opinava, de vivermos coisas violentas, e de que parece que queremos colocar a violência nos palcos, de uma maneira atractiva, quando a violência não deixa de ser violência, pois acredito que o teatro universitário é o sítio para se colocar essa violência, para nos darmos conta de que ela está lá… A verdade é que não sei como vai reagir o público. É uma dramaturgia que vai referenciando as cenas de Sarah Kane, os momentos que ela viveu, essa queda livre, sem tentarmos julgá-la, em momento algum. Podemos pensar aquilo que Sarah também pensava, em muitas ocasiões. Tem-se medo de ouvir o que diz o público, mas também é preciso ser-se corajoso e fazer os espectáculos que lá estão, no palco. A Sarah Kane é tremenda, dá-nos muito medo e, se nos enganamos (mas não nos enganaremos), há que tentar.

Pensa que o teatro universitário deve arriscar, nesse sentido?
Sim. Penso que o teatro universitário é um ponto de encontro, de formação, criação e experimentação. Se não se fizesse no teatro universitário, estaríamos perdidos. Não é que se permita absolutamente tudo, mas tem que haver experiências. Nós, neste processo, temos, sobretudo, que aprender e ouvir, muito, todos os membros da companhia. Mas muitos dos actores não têm experiência prévia. Isso é um problema, face a obras como a de Sarah Kane? Sim, pensamos muito sobre se a devíamos encenar ou não, porque a verdade é que, para se encenar Sarah Kane, é preciso ter uma formação muito grande… então provoca medo. Mas, no campo do teatro universitário, acho que é uma grande aprendizagem aproximarmo-nos da figura de Sarah Kane. Aquilo que ela diz é algo tão quotidiano que vai ser bem recebido pelas pessoas que estão na universidade, porque são muito “abertos”. É verdade que não têm muitíssima experiência, porque muitos deles estão no início, mas talvez seja isso que os faz ser mais abertos, mais “esponjas” e não tentar tanto exagerar as coisas. Partem da normalidade, que é o que tentamos.

Que significa, para si, trabalhar esta obra, tanto a nível profissional como pessoal?
A nível pessoal, ao escrever a dramaturgia, houve momentos de desespero. Porque, efectivamente, a atmosfera que rodeia as obras de Sarah Kane é complicada. Depois de lê-las, senti um impacto, porque são demasiado fortes. Mas depois dessa crise, dá-se mais um passo e começa-se a compreender tudo, de outra forma. Deixamos de nos concentrar na violência e fixamo-nos no que há por detrás de todas as palavras de Sarah. E, a nível profissional, é um passo importante porque esta obra representa o meu regresso à direcção da companhia. Há muito tempo que eu já não dirigia teatro universitário e, claro, tem-se sempre os medos típicos da folha em branco. Mas penso que está a ser uma experiência maravilhosa com os membros do grupo, tanto a nível formativo como para trabalhar mais arduamente a figura de Sarah Kane, que é algo que eu já pensava fazer desde há muito tempo. Fonte: http://novosmedios.org/proxectos/arredor/?attachment_id=246 ?